Euclides, quadriláteros e a decadência teórica da Matemática

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Se olhamos bem, vemos que há muito de inexato, dúbio e contraditório também no seio desta que é tida como a mais exata das ciências, a Matemática.

Para que se tenha um exemplo disso, basta se preste atenção à forma como conhecemos, hoje em dia, as figuras geométricas. Isso porque, devido a um processo que entendemos ser de verdadeira decadência teórica da Matemática, acabamos por criar como que um abismo entre o nome e o conceito dessas formas, do que advêm diversas e enormes confusões. Nesse sentido, a despeito disso passar comumente desapercebido, nos estudos de geometria dos ensinos fundamental e médio, entendemos que explorá-lo pode trazer muitos benefícios aos nossos alunos, em contribuindo para o desenvolvimento do seu pensamento crítico, de fundo lógico-dedutivo, e do seu senso estético, aplicados à Matemática - afora isso constitua per se uma discussão que efetivamente deveria estar sendo feita nos círculos acadêmicos.


Neste artigo, trabalharemos esse distanciamento entre nome e conceito de figuras geométricas particularmente quanto àquelas planas quadriláteras, indicando brevemente, também, ao fim, caminhos pelos quais se pode interpretar o processo a que fizemos referência acima, relativo à decadência teórica da Matemática (na pretensão antes de iniciar que de esgotar a discussão).


Retângulos, entre o quadrado e o oblongo

Se por acaso lhe pedíssemos para imaginar um “retângulo", temos quase absoluta certeza de que a figura na qual você pensaria teria quatro ângulos retos e seria mais alongada, com dois pares de lados opostos congruentes, isto é, de mesma medida, como representado abaixo. 



E você não está errado: isso é, de fato, um retângulo - e, para nós, do século XXI, esse é “o retângulo”. Ocorre, porém, que, se buscarmos conceituar “retângulo”, de modo geral, veremos que essa não é a única figura que poderia ser imaginada por você.


Resgatemos, pois, a 22a definição do Livro I d’Os Elementos, de Euclides, conforme reproduzida abaixo, a partir da edição da UNESP. 


E das figuras quadriláteras, por um lado, quadrado é aquela que é tanto equilátera quanto retangular, e, por outro lado, oblongo, a que, por um lado, é retangular, e, por outro lado, não é equilátera, enquanto losango, a que, por um lado, é equilátera, e, por outro lado, não é retangular, e romboide, a que tem tanto os lados opostos quanto os ângulos opostos iguais entre si, a qual não é equilátera nem retangular; e as quadriláteras, além dessas, sejam chamadas trapézios.


Nela, como se pode ver, temos tacitamente definido o que vem a ser uma figura quadrilátera retangular: é aquela forma plana de quatro lados que tem todos os quatro ângulos retos (de medida 90º), simplesmente.


Assim, tanto o quadrado (retangular e equilátero) quanto “o retângulo" (retangular e não-equilátero) compõem a família dos retângulos. Por que, então, apenas uma dessas figuras recebe o nome de “retângulo”, sendo que ambas poderiam (e deveriam, numa dimensão essencialmente conceitual) ser assim chamadas? Pois bem…eis um exemplo das diversas e enormes confusões que se podem encontrar em nossa Matemática atual, a que fizemos referência na introdução deste artigo.


Frisamos que isso é típico da Matemática de nossos dias - fruto de um processo de decadência teórica, como desenvolveremos adiante - não ao acaso: note-se que Euclides, em sua obra, não recai em semelhante problema, na medida em que preserva o conceito/a categoria de “retângulo" enquanto tal, dentro do que, então, localiza os quadrados (retângulos equiláteros) e os oblongos (retângulos não-equiláteros). A figura abaixo apresenta esses dois tipos de retângulos que se podem construir.


 


Paralelogramos, a grande classe de quadriláteros

Algo semelhante ao que se passa com os retângulos ocorre quanto aos paralelogramos, porém ainda mais gravemente: ao invés de uma figura acabar por ser suprimida no uso vulgar de um conceito como nome, serão três, como veremos a seguir.


Se por acaso lhe pedíssemos para imaginar um “paralelogramo”, temos quase absoluta certeza de que a figura na qual você pensaria seria inclinada para um lado, com dois pares de ângulos opostos e dois pares de lados opostos congruentes, isto é, de mesma medida, como representado abaixo. 



E, novamente, você não está errado: isso é, de fato, um paralelogramo - e, para nós, do século XXI, esse é “o paralelogramo”. Ocorre, porém, que, se buscarmos conceituar “paralelogramo”, de modo geral, veremos que essa não é a única figura que poderia ser imaginada por você.


Resgatemos, pois, outra vez, a 22a definição do Livro I d’Os Elementos, de Euclides. A partir dela, podemos compreender o que vem a ser, conceitualmente, um paralelogramo: é aquela forma plana de quatro lados que tem dois pares de lados opostos paralelos, isto é, que nunca se cruzam, uma vez prolongados até o infinito como retas.


Assim, o quadrado, o oblongo (“o retângulo” dos dias atuais), o losango/rombo e “o paralelogramo” (que nos é tão familiar hoje em dia), são todos componentes da família dos paralelogramos, não obstante o uso comum do termo, hodiernamente, para se referir a uma única figura em específico. É por isso que dissemos ser mais grave, aqui, a confusão que advém da separação entre conceito e nome em nossa geometria, porque perde-se um conceito/uma categoria verdadeiramente inescusável para se distinguir os quadriláteros de modo geral, agrupando-os quanto às suas características mais fundamentais.


Euclides também nesse ponto, com o elevado rigor teórico em que operava suas abstrações geométricas, não se deixa perder tal como fizemos nós, ao longo do tempo: chamando ao nosso paralelogramo de “rombóide”, fica preservada o termo “paralelogramo" para sejam agrupados todos os quadriláteros em que se verifique haver dois pares de lados opostos paralelos, pelo que as figuras planas de quatro lados podem ser distinguidas em dois grandes grupos: paralelogramos (quadrado, oblongo, losango/rombo e rombóide) e trapézios - exatamente como é feito na 22a definição d’Os Elementos. Note-se que os paralelogramos todos, dentre outras particularidades, têm sua área calculada a partir do produto de sua base pela sua altura, diferentemente dos trapézios, os quais, vale dizê-lo, tem apenas um par de lados opostos paralelos.


Abaixo, encontram-se todos os quadriláteros da família dos paralelogramos, na nomenclatura proposta por Euclides: 



Apontamentos sobre a decadência teórica da Matemática

Agora que discutimos já acerca das diversas e imensas confusões advindas da separação entre conceito e nome das figuras geométricas, a partir do estudo dos quadriláteros, queremos deixar brevemente indicados alguns apontamentos acerca do processo de decadência teórica da Matemática a que fizemos referência neste texto, enquanto “responsável" pelo que aqui problematizamos. Note-se que nossa pretensão é antes iniciar que esgotar esse debate.


Pois bem. Parece-nos que esse processo operou sobre os quadriláteros da seguinte forma: enquanto Euclides, por exemplo, buscava, em primeiro lugar, conceituar as figuras geométricas ponderando quais as suas características mais essenciais, que realmente as definem enquanto formas únicas, a partir do confronto de cada quadrilátero com as três categorias/os três conceitos por ele formulados para esse fim (“retangular”, “equilátero”  e “paralelogramo”), desenvolvimentos posteriores na geometria parecem ter voltando sua atenção sobretudo para características não-definidoras das figuras, tais como suas propriedades quanto aos seus lados e ângulos e suas fórmulas de áreas. É como se se passasse a preterir aquilo que é estrutural por aquilo que é meramente conjuntural.


Esse movimento está intimamente associado à gradual transformação da geometria por influência da álgebra, que tanto alterou o caráter dos seus problemas e, em decorrência disso, os seus próprios instrumentos teóricos de trabalho: dos problemas envolvendo construções geométricas de fato, cujas resoluções constituíam ou ao menos se assemelhavam a demonstrações, passa-se a exercício de determinação de grandezas em cenários específicos, e de axiomas, teoremas e nomenclaturas afinadas a definições, passa-se a fórmulas e nomes sem real fundo conceitual.


Assim, pouco a pouco perece-nos foi-se perdendo o rigor teórico eminentemente geométrico na geometria, porque cada vez menos "necessário" face aos procedimentos algébricos, culminando no que vimos neste texto: o descolamento entre nomes e conceitos de figuras - algo que parece desprovido de importância e que passa comumente desapercebido, mas que, como esperamos haver deixado claro, quer dizer muito sobre o que resta para além da fórmula na Matemática.


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REFERÊNCIAS


EUCLIDES. Os Elementos (trad. de Irineu Bicudo). São Paulo: ed. UNESP, 2009. 600 pgs.


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